A aglomeração e o burburinho sempre foram características marcantes em grandes fábricas de veículos, como as do ABC. Principalmente na troca de turnos, nas refeições ou mesmo durante assembleias que decidiam por mobilizações, como greves. Mas a covid-19 mudou essa rotina. A próxima segunda-feira será diferente na Scania, primeira montadora a retomar o trabalho depois de toda a produção de veículos ser interrompida para conter a pandemia. O reencontro entre os que retornarão das férias coletivas tende a ser bem menos caloroso do que em outros tempos. Para alguns, a vida nas fábricas nunca mais será a mesma.
A começar pela saída de casa. O empregado da Scania que utiliza transporte fretado vai notar a diferença no primeiro degrau do ônibus, onde será colocado um capacho com produto desinfetante para os sapatos. O primeiro a entrar tem que ir para o fundo do ônibus. E ninguém estará autorizado a ocupar o banco ao lado de quem já está sentado. Os últimos serão os primeiros na fileira dos coletivos, equipados com álcool em gel. O número de ônibus foi dobrado para garantir distanciamento e vans seguirão o fretamento para ajudar na organização. Horários de chegada dos ônibus também foram alterados para evitar tumulto.
À entrada da fábrica de caminhões e ônibus da Scania, à margem da Via Anchieta, em São Bernardo do Campo (SP), enfermeiros com termógrafos estarão a postos para medir a temperatura de cada funcionário. Ao entrar na fábrica, ninguém mais vai tomar café da manhã ao lado dos colegas no refeitório. Cada um receberá um kit com pão, bolo, fruta e suco e decidirá onde, sozinho, degustar seu lanche.
Antes da pandemia, a Scania operava em um turno. Agora serão dois. Isso não significa que o trabalho aumentou. A equipe será dividida em dois horários para garantir o distanciamento e redução de ritmo apropriada ao que o momento exige. O número de horas trabalhadas em um turno, que costumava ser de oito, não vai passar de três nos primeiros dias, segundo Danilo Rocha, responsável pela área de recursos humanos da montadora sueca.
“Vamos ter muita conversa para orientações, incluindo médicos e representantes do sindicato”, afirma o executivo. “Estamos buscando o novo normal”, destaca Rocha. Para ele, assim como “a vida não será a mesma, o modo de trabalhar também vai mudar”.
O novo coronavírus deixará tudo mais lento. Entre a saída do primeiro turno, às 16h15, e a entrada do segundo haverá intervalo de uma hora e 15 minutos. Não usar o mesmo ônibus que deixou a turma que entra para levar a que sai é outra precaução criada pela pandemia. E antes de deixar o posto de trabalho cada empregado terá que fazer uma completa higienização das ferramentas. Na área de produção, a empresa não informa quantos voltarão ao trabalho. Uma parte ficará em casa, em licença remunerada. Isso inclui pessoas do grupo de risco.
A automação colocou muitos robôs nas linhas de montagem. Mas isso não significa, destaca Rocha, que as fábricas são vazias. “Dá trabalho cuidar de um robô. Nós tiramos o soldador, mas ao mesmo tempo entrou um técnico de automação, responsável pela máquina”, afirma o executivo.
O presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, Wagner Santana, diz que o nível de automação varia. Enquanto em algumas empresas o para-brisa do carro é colocado por robô em outras o mesmo serviço é feito por dois operários.
Segundo Santana, o acabamento interno do veículo é uma preocupação. “Geralmente três ou quatro operários trabalham juntos”, diz. Eles fazem tarefas como colocar fiação e borrachas ou ajustar bancos. São coisas que só humanos conseguem fazer, ainda. O sindicato criou uma linha telefônica para denúncias. Segundo Santana, já aparecem relatos de metalúrgicas que não respeitam distanciamento ou deixam de oferecer álcool em gel aos funcionários.
Santana diz não estar preocupado com o futuro das mobilizações dos trabalhadores numa época em que as assembleias em porta de fábrica não fazem sentido. Segundo ele, nas assembleias on-line, para votar os acordos de flexibilidade nos contratos, que têm sido firmados nos últimos dias, a participação tem ficado em torno de 70%, percentual igual à média das recentes reuniões presenciais.
Nas montadoras, o primeiro dia da volta ao trabalho será crucial. O presidente da Volkswagen na América Latina, Pablo Di Si, pretende estar pessoalmente na área de produção no dia 4 de maio, quando a Volks retomará a atividade. Ele diz que é bom ficar de olho “para que nenhum distraído esbarre em ninguém”. A Volks prepara vídeos para transmitir orientações em telões espalhados nas quatro fábricas instaladas do país.
Todas as montadoras têm desinfetado ambientes de trabalho, restaurantes e banheiros. Termógrafos serão instalados nas entradas de turnos e a ocupação dos refeitórios será reduzida à metade. Assim como os ônibus fretados. “Todo o mundo vai viajar na janelinha”, afirma o presidente da Volkswagen Caminhões e ônibus, Roberto Cortes. “É preciso criar um ambiente seguro”, destaca o presidente da Ford na América do Sul, Lyle Watters. A Ford colocou, diz o executivo, “um time global de médicos” à disposição dos funcionários.
Na Scania, um guia de dez capítulos criado no Brasil, divulgado eletronicamente e entregue na casa de cada trabalhador, foi traduzido para inglês e sueco e, segundo Rocha, tornou-se referência na companhia.
A turma do “home office”, que, em grande parte, manterá o trabalho remoto depois que a linha de produção voltar a funcionar, também recebeu o seu. A empresa não informa quantos da área de produção voltarão ao trabalho. Uma parte ficará em casa, em licença remunerada. Isso inclui pessoas do grupo de risco.
Há muito ainda para resolver nessa indústria. O que não falta é tempo e espaço, já que a demanda não dá sinais de recuperação. Mas alguns detalhes não podem ser descuidados. É o caso de motoristas que levam peças até as montadoras. Velho conhecido, era comum ele sair do veículo e dar um abraço nos mais chegados. Segundo Rocha, a ordem agora é descer só para abrir a carreta e voltar imediatamente para a cabine do caminhão. O novo coronavírus acabou com muitos abraços. Até na linha de montagem.
Fonte: Valor Econômico, por Marli Olmos, 23.04.2020